sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

O ato de traduzir


            Um dos temas deste blog é a tradução. Mas afinal o que é exatamente a tradução? No que consiste o ato tradutório? Quais são os problemas que o tradutor enfrenta? É sobre isso que eu quero falar um pouco.
 
A visão mais comum do tradutor, sobretudo antigamente, é a de um escravo do texto original e do autor. O tradutor deveria se manter sempre preso ao seu “trabalho”, sem interferências de nenhum tipo. Hoje em dia estudos mostram que a coisa não é bem assim.
A característica mais citada quando se fala de uma boa tradução é a fidelidade do tradutor. Mas fidelidade à que? Ou à quem? É possível ser totalmente fiel a algo de forma que o trabalho final seja a representação ideal e perfeita, a transposição completa de um texto para outra língua, com os mesmos sentidos, expressões, formas etc? A resposta é não. Caso contrário não haveria necessidade de tantos tradutores diferentes traduzindo as mesmas coisas, pois cada tradução seria igual. A exceção são os textos muito técnicos ou matemáticos, onde não existam interpretações diferentes.
Para começar, a tradução nada mais é do que uma forma de interação comunicativa. Por isso, a maioria dos estudos sobre tradução se vale de elementos da lingüística, como, por exemplo, o esquema de comunicação de Jakobson, para explicar alguns aspectos da tradução. Mas como a minha finalidade aqui é apenas fazer algumas considerações sobre o que significa traduzir, e não entrar na linguística,vou passar direto a algumas das questões que envolvem a tradução.
Uma das coisas que o autor tem em mente (mesmo que não consciente) quando escreve é o seu referente, a sua visão de mundo. Sabemos que os países possuem culturas diferentes, e a língua é apenas uma pequena parte disso, então como transpor a cultura de um país, presente em um texto, para uma outra cultura totalmente diferente? Isso é muitas vezes um problema para os tradutores, e não há uma única solução. O tradutor deve escolher se mantém as referências da cultura original no seu texto ou se as substitui por elementos da sua própria cultura, ou ainda se faz uma mistura entre as duas, mantendo algumas coisas e mudando outras. Cada uma dessas soluções tem suas vantagens e desvantagens. Em textos literários é interessante manter as referências da cultura original, que normalmente é uma das características do livro, e serve como um atrativo, mas pode dificultar o entendimento de algumas coisas para pessoas que não tem familiaridade com os hábitos do outro país. Já na literatura infantil é muito comum a substituição pela cultura do universo da criança, o que facilita o entendimento, mas ao mesmo tempo priva a criança de um aprendizado que poderia se revelar interessante.
A questão das notas de rodapé também não é tão simples. O tradutor pode se valer desse recurso como forma de explicar algum detalhe que não coube no meio do texto, ou fazer alguma consideração sobre a cultura e língua original para tornar alguma referência mais clara. Mas não é sempre que a nota de rodapé é bem-vinda, depende do tipo de texto que se está traduzindo. Em um texto infantil é quase impossível encontrar essas notas, porque a criança quase sempre não quer parar a história para ler explicações, isso dificultaria a leitura. Nesse caso é preciso encontrar uma solução dentro do texto. E, a não ser que se trate de algum texto acadêmico ou científico, muitas notas de rodapé podem tornar uma leitura cansativa.
Outro obstáculo para os tradutores é a língua. Ou, mais precisamente, as características da língua usada no texto original. Por exemplo, se um texto é muito antigo, escrito em uma língua arcaica, o tradutor tem a opção de traduzir mantendo os arcaísmos para que a sensação que o seu texto cause no leitor seja a mesma sensação que o leitor da língua original terá ao se deparar com o texto, ou de modernizar o texto, tornando-o de fácil compreensão. Essa escolha depende da intenção do tradutor com aquele texto.
Quando um autor escreve um texto há três tipos de mensagem: aquela que o autor quis dizer (mensagem pretendida), aquilo que ele realmente escreveu, e que é na verdade um conjunto de várias interpretações possíveis (mensagem virtual) e a interpretação feita pelo leitor (mensagem efetiva). Isso quer dizer que o autor nem sempre consegue escrever de fato aquilo que queria dizer, e que a interpretação dos leitores varia muito, cada um pode entender uma coisa diferente, e é muito difícil alguma dessas interpretações ser a mensagem que o autor imaginou.
Assim, a tradução parte sempre de uma visão do texto, de uma possível leitura, feita pelo tradutor. A menos que ele tenha contato com o autor do texto original, é impossível saber o que este pensava de fato quando escreveu o texto, ou o que ele quis dizer. Então, pensando na questão da fidelidade, o tradutor só pode ser fiel à sua interpretação, ao que ele vê no texto, e aí toda interpretação é válida.
O mais importante é lembrar sempre que dois textos, o original e o traduzido, nunca são iguais. Eles mantêm uma correspondência entre si, tentam passar mensagens parecidas, tentam produzir os mesmos efeitos de sentido, mas não podem ser tomados como exatamente iguais. As traduções de um mesmo texto também nunca são iguais pois são frutos da visão pessoal dos tradutores, que têm experiências de vida diferentes,  escrevem para públicos diferentes e têm finalidades diferentes com aquele texto. O importante é se manter fiel às suas intenções, e pensar nas expectativas do seu leitor, para que a sua tradução seja aceita e reconhecida.

 
            Este texto teve como base o livro As (in)fidelidades da tradução: servidões e autonomia do tradutor de Francis Aubert (Campinas, SP: Unicamp, 1993 - Coleção Viagens da Voz).

2 comentários:

Júlia Pontes disse...

Muito bom o texto, Ana!
Tenho um livro interessante sobre tradução, se chama "Conversas com tradutores - Balanços e perspectivas da tradução", é da editora Parábola e a organização é de Ivone Benedetti e Adail Sobral. São entrevistas com tradutores, em que eles falam do trabalho, da formação do tradutor, do campo de trabalho, remuneração, enfim, fazem um balanço mesmo da profissão.

Beijo.

Ana Lucia disse...

Valeu pela indicação, vou procurar esse livro p/ ver.
Beijos